Por Tarcisio Novais.
Penso que poucos fenômenos sociais reflitam de forma tão contundente as contradições do mundo em que vivemos que a escalada incontrolável da violência urbana. Somos bombardeados diuturnamente por notícias que expõem índices de violência e brutalidade humanas que explicitam o grau de deterioração dos laços sociais a que chegou o mundo dito civilizado e, no que diz respeito à nossa realidade próxima, a sociedade brasileira.Há poucas semanas acompanhei, com grande pesar, mais uma tragédia familiar que se desenrolou aos nossos olhos, fartamente noticiada pela imprensa, e que ceifou a vida do jovem professor Igor Duque num semáforo em Recife, baleado por um menor.As características do crime, tal qual a crônica de uma morte anunciada, seguiram o mesmo padrão dos sucessivos assassinatos a sangue frio que vitimaram outras tantas preciosas vidas. Os sentimentos de horror, indignação, medo e impotência afloram em todos nós. Clamamos por justiça. E imagino também que todos buscamos intimamente respostas para compreender o que nos parece absurdo e inexplicável. É sempre um convite à reflexão.
As respostas imediatas da sociedade brasileira a crimes dessa natureza reverberam indignação, e invariavelmente demandam a ampliação das medidas repressivas e punitivas, seja através da criação de novas leis (como a redução da maioridade penal), ou cobrando uma atuação mais eficaz do aparelho repressivo do Estado. São propostas recorrentes que sempre vêm à tona em momentos de consternação da opinião pública. Uma indignação justa, em vista da gratuidade e brutalidade dos crimes, mas que infelizmente se manifesta em toda sua potência apenas quando vitimiza pessoas que por sua condição dispõem de visibilidade social, e com quem imediatamente nos identificamos pelo sentimento de proximidade.Entretanto, quando confrontada diante de fatos e números que atestam a magnitude da violência e do genocídio perpetrados diariamente contra a massa dos “invisíveis” sociais, a reação da sociedade perde muito de seu ímpeto, e resvala para o perigoso terreno da indiferença.
O imenso contingente populacional dos excluídos fadado à invisibilidade social se posiciona numa espécie de limbo político-jurídico, é dizer, apesar de formalmente contemplados pelas garantias da cidadania, na prática estão apartados de seu usufruto. Destituídos dos direitos econômicos e sociais básicos previstos pela constituição, são ademais as vítimas preferenciais da violência homicida, mormente a praticada pelo Estado, sempre marcada pela impunidade. Nossos excluídos sociais vivenciam uma condição humana análoga à do homo sacer, conceito teorizado pelo filósofo italiano Giorgio Agambem, figura jurídica que remonta ao direito romano arcaico, literalmente significando ‘homem sagrado’, aquele que, julgado e condenado por grave delito, era banido do convívio social, simultaneamente considerado indigno de ser sacrificado, por sua natureza impura, mas cujo homicídio não era considerado ato criminoso, ficando à mercê de toda sorte de violências, e na deprimente situação do eterno “estrangeiro”. Nosso homo sacer contemporâneo também experiencia uma forma análoga de exclusão-inclusiva, na medida em que é “insacrificável” sob os auspícios da norma legal; mas cuja eliminação é friamente tolerada (e até incentivada) pela sociedade.
Uma análise mais detida desses fatos irá apontar para sua implicação no contexto mais amplo do quadro sócio-econômico e das características da genealogia de nossa sociedade.Esta situação extremamente complexa carece de uma resposta mais profunda e corajosa da sociedade organizada, para muito além da mera hipertrofia do sistema penal, como querem os setores conservadores. Suas raízes tem ramificações diversas, mas as causas mais evidentes do problema podem ser delineadas com alguma clareza.No plano econômico-social é óbvia a vinculação entre o processo de globalização sob a égide do neoliberalismo e a progressiva deterioração do nível de vida dos setores mais carentes da população. Fenômenos universais tais como concentração de renda, desemprego estrutural, precarização do trabalho, progressivo desmantelamento das redes de proteção social, e crecente mercantilização das relações humanas são constitutivos deste padrão de globalização, processo que se intensificou velozmente nos últimos 30 anos. Ainda dentro da lógica vigente do capitalismo tardio e sua racionalidade econômica, aqueles indivíduos duplamente excluídos das esferas da produção e consumo recebem o status implícito de sub-cidadãos, que carrega em si os estigmas da inutilidade e descartabilidade, vivendo sob o signo do abandono.
No âmbito político verificamos um crescente ceticismo da sociedade brasileira em relação à efetividade e legitimidade da democracia representativa e suas instituições, fruto tanto do flagrante descompasso entre os direitos constitucionais formais adquiridos e a efetivação concreta das garantias sociais previstas; quanto do distanciamento indesejável entre a sociedade civil e os processos decisórios que lhe dizem respeito.
Somado a esse conjunto de fatores associam-se ainda o processo histórico peculiar da formação de nossa sociedade, com base econômica assentada durante muito tempo na mão-de-obra escrava de negros e índios, tendo evidentes implicações na construção de nosso paradigma político-jurídico, o qual muito assimilou dos elementos autoritários e de exceção decorrentes da relação senhor/escravo e da necessidade de controle social desse contingente de trabalhadores; ainda hoje reverberando na forma discricionária com que a justiça brutaliza negros e mulatos.
O aprofundamento recente deste amálgama de condições históricas sócio-político-econômicas excludentes sempre caminhou pari passu com a elevação dos índices de violência. Qualquer pessoa com mais de 35 anos é testemunha deste fato.
Em suma, me parece óbvia a necessidade de desviarmos o foco das soluções que privilegiam a hipertrofia penal e a criminalização dos movimentos sociais, tendências dominantes nos meios hegemônicos; para encararmos a penosa tarefa de reformular a sociedade a partir de suas raízes. A tarefa essencial a ser empreendida passa pela inclusão desses cidadãos hipossuficientes nas benesses da civilização. Reduzir a violência equivale a reduzir o desespero e a dor. Num estado anômico, materialmente desigual, sem valores e referenciais humanistas compartilhados coletivamente, a violência e a barbárie campeiam, inapelavelmente.
Em que pesem os avanços sociais do governo Lula , o que assistimos hoje é um aparelho estatal brasileiro que ainda assume para si como função principal a tarefa de controle social repressivo de uma sociedade desgovernada, que em muitos aspectos parece ter regredido ao estado de natureza hobbesiano, onde barbárie e selvageria pautam as relações humanas; se omitindo de seu papel constitucional de salvaguardar as garantias fundamentais e a dignidade humana.
Uma matéria recente do JC ( 10/06) exemplifica bem uma dessas variáveis que costumam ser desconsideradas na análise do problema. A reportagem aborda o fato de que aproximadamente 220.000 crianças e adolescentes estão fora da escola, só em Pernambuco, por razões as mais diversas, mas em geral vinculadas aos contextos inter-relacionados de omissão estatal e miserabilidade de suas existências. Que tipo de futuro é reservado a esses indivíduos no seio de uma sociedade estruturada sobre o individualismo competitivo e a prevalência do mercado, e com a omissão conivente do Estado? Como desconsiderar o nexo causal entre marginalidade econômica e marginalidade social? Como não imaginar que seu destino é quase inexoravelmente a criminalidade e a morte violenta?
São questões que, por mais que escamoteadas, teimam em retornar, como um conteúdo recalcado que produz sintomas, e cuja solução passa necessariamente por seu enfrentamento corajoso e realista, desde sempre postergado.
Enquanto insistirmos em considerar nossos excluídos causa das disfunções sociais e não seu mais acabado produto, a tendência continuará a apontar para um acirramento dos conflitos sociais com desdobramentos imprevisíveis. Esconder o problema debaixo do tapete dos sistemas repressivo-prisionais está longe de ser a solução.
Armas, muros, milícias, blindagens, cercas e afins apenas acentuam os matizes de guerra civil de nossa realidade, nos dando em contrapartida uma ilusória sensação de segurança.
Enfrentemos, pois, a verdadeira face do monstro, enquanto é tempo. Por nós, pelos nossos filhos, e por uma sociedade menos enlutada.