domingo, 16 de agosto de 2009

• CARTA AOS MÉDICOS CHEFES DOS MANICÔMIOS


Senhores,
As leis e os costumes concedem-vos o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredicto. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras? Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto rebelamos-nos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo as suas investigações no domínio do espírito.
E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cómoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra. Não levantaremos aqui a questão dos internamentos arbitrários, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de ideias e actos humanos. A repressão dos actos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os actos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.Sem insistir no carácter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os actos que dela decorrem.Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem diccionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.
(Escritos de Antonin Artaud)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O HOMEM EXPLORA O HOMEM, E POR VEZES É O CONTRÁRIO - Woody Allen -

Por: J. Farias


Deixemos aos filósofos dogmáticos a árdua tarefa de velar verdades, e aos historiadores a liberdade poética de contar os fatos. A nós, livres pensadores resta-nos dissecar filosofia e história, na tentativa de encontrar as verdades nos fatos.
Recentemente, em um de nossos prazerosos encontros do Grupo de Leitura (Clube do Livro), onde a proposta era (e foi) discutir a obra e o pensamento de Eduardo Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”, inevitavelmente a discussão tomou em dado momento o aspecto de preocupação social e, como cidadão inserido nesse contexto, valho-me do direito de expressão para provocar uma discussão menos ideológica e discursiva, e mais direta e objetiva, galgada nos fatos e na experiência, na intenção de que uma luz de inteligência e conhecimento adentre os porões escuros de minha ignorância.
A exploração do homem pelo homem já rendeu e vendeu muitos livros e, a própria palavra “exploração” carrega em si mesma uma conotação pejorativa, negativa e de repúdio. Sim claro, nosso instinto natural de liberdade rebate de pronto a palavra e seu significado mais próximo e próprio. No entanto desde os primeiros registros da história da humanidade as relações sempre foram nesse nível, em maior ou menor grau. Descobrir – Conquistar – Dominar - Explorar. Foram sempre as metas das “civilizações” mais “avançadas”. As ditas civilizações menos evoluídas ou pelo menos com menor poder bélico ou de argumentação se viam obrigadas ou catequizadas as vontades da primeira. O velho conhecido instinto de sobrevivência, agora aguçado pelo sentido humano e ciente da necessidade das relações mútuas, empana e dribla com agilidade e sutileza de palavras o que desde os primórdios dos tempos e das relações humanas o homem faz com o outro homem: explorar. Claro que podemos ir além do Aurélio e dar uma nova interpretação e leitura, descobrir e inventar um sinônimo mais agradável e menos agressivo, encontrar alternativas dialéticas para dourar a pílula, mas a realidade pesa mais que toda a nobreza ideológica e o que vemos nos nossos dias não são muito diferentes do que se via no passado, apenas recebeu o requinte do pensamento moderno e das palavras ilusórias. Quanto vale mesmo o conhecimento e o preparo do meu filho na escola? Os cuidados de uma babá? Os tratos de uma enfermeira para com meu velho pai? De quanto (financeiramente) falamos quando nos referimos aos nossos funcionários? Meu carro, minha casa, minha roupa, minha educação, minha alimentação, minha dormida... Tudo é fruto da exploração do homem pelo homem. Se não direta, indiretamente, somos sempre beneficiados por esta exploração. Podemos apelar para a retórica do legal (a lei da procura e da oferta. Os valores de mercado... É o que a Lei determina... etc.). Mas, moralmente, isso justifica os baixos salários - às vezes menos, ou metade do mínimo - em relação à carga horária exercida e os benefícios que essa mão de obra nos traz? A palavra “remuneração” parece de longe substituir a tão temida e negada palavra “exploração”. Trabalha, e trabalhará sempre aquele que precisa, e este sempre estará em desvantagem àquele que o paga, independente de como se conduz essa relação patrão-empregado. Sempre houve, e tudo leva a crer que sempre haverá os que comandam e os que são comandados.
Cabe, entendo eu, a pergunta; Não é essa exploração a responsável direta da evolução humana? Sem ela não estaríamos todos acendendo fogo pela fricção de gravetos?
Resta-nos descobrir formas mais dignas e humanas de se conduzir estas relações, pois o discurso simplista de igualdade é puramente ideológico.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Texto do Galeano

Olá, amigos. Já que vamos hoje discutir o livro do Galeano, vou aqui reproduzir um texto do autor, extraído do site da Agência carta maior, para entrarmos no clima.

Eduardo Galeano: a linguagem, as coisas e seus nomes

Na era vitoriana era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita.

Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:O capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;

O imperialismo se chama globalização;As vítimas do imperialismo se chamam países em via de desenvolvimento, que é como chamar de meninos aos anões;

O oportunismo se chama pragmatismo;A traição se chama realismo;Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

A expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;

O direito do patrão de despedir sem indenização nem explicação se chama flexibilização laboral;

A linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;em lugar de ditadura militar, se diz processo.

As torturas são chamadas de constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;

Quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleoptomaníacos;

O saque dos fundos públicos pelos políticos corruptos atende ao nome de enriquecimento ilícito

;Chamam-se acidentes os crimes cometidos pelos motoristas de automóveis;Em vez de cego, se diz deficiente visual;

Um negro é um homem de cor;

Onde se diz longa e penosa enfermidade, deve-se ler câncer ou AIDS;

Mal súbito significa infarto;

Nunca se diz morte, mas desaparecimento físico;

Tampouco são mortos os seres humanos aniquilados nas operações militares: os mortos em batalha são baixas e os civis, que nada têm a ver com o peixe e sempre pagam o pato, danos colaterais;E

m 1995, quando das explosões nucleares da França no Pacífico Sul, o embaixador francês na Nova Zelândia declarou: “Não gosto da palavra bomba. Não são bombas. São artefatos que explodem”;

Chama-se Conviver alguns dos bandos assassinos da Colômbia, que agem sob proteção militar;

Dignidade era o nome de um dos campos de concentração da ditadura chilena e Liberdade o maior presídio da ditadura uruguaia;

Chama-se Paz e Justiça o grupo militar que, em 1997, matou pelas costas quarenta e cinco camponeses, quase todos mulheres e crianças, que rezavam numa igreja do povoado de Acteal, em Chiapas.

(Do livro De pernas pro ar, editora L&PM)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Velemos por Michael! Velemos por nós!





Por: Djnaldo Galindo

Definitivamente, mede-se o nível de valores e de sofisticação de uma determinada sociedade, quando se observa a biografia de seus líderes e heróis e ícones - termo mais usado no mundo da arte pop. Há mais de uma semana, somos bombardeados por uma cobertura irrestrita da mídia sobre repentino desaparecimento do cantor pop star Michael Jackson. Não é de hoje sabermos que a morte dos ditos famosos sempre teve e terá um nível de repercussão que, mais para atender aos interesses comerciais da mídia, muito maior do que a grandeza e importância do morto, foi, e será também parte de um grande negócio. No caso específico do Sr. Jackson, beira as raias do absurdo. Independentemente de nossa aprovação ou não, quase choramos ao ouvir a canção “Ben” executada exaustivamente junto as imagens do cantor ainda criança á época do Jackons 5. Impossível não se incomodar com esse estado de coisas, principalmente quando chegam-nos as notícias, pela mesma mídia, dos resultados primários da dissecação do cadáver. O morto, ao contrário da vasta cabeleira das fotos e aparições públicas, era careca. Embora negasse a maioria em vida, tinha treze marcas evidentes de cirurgias estéticas, algumas costelas quebradas e finalmente, exceto muitos “medicamentos analgésicos”, não se encontrou nada no seu estomago. Fujamos a estas duas atitudes! É muito fácil e cômodo á aqueles que apenas vêm os fatos de maneira superficial ter duas atitudes distintas diante do acontecimento: uma maioria corre as lojas de discos, leva flores ao Rancho Never Land, derramam-se em lágrimas até que a mídia esqueça ou então que surja outra morte famosa, e opostamente a esse grupo (talvez também este que escreve), há uma minoria que rosna, lamenta e range os dentes, criticando a mídia, o populhacho e o próprio morto pela repercussão, no entender deles, desproporcional e injusta, seja pela vida indigna de exemplo do morto, seja pelos grandes problemas da humanidade, donde a mídia é quase sempre ausente e omissa. Saiamos da superfície! Deixemos Michael descansar em paz! Não fomos nós que criamos o Jackson? “Um homem que não aceita sua própria cor”! Será que não sabemos como se tratam os pretos? “Pra que tantas cirurgias plásticas?” Por que uma vida nababesca? Talvez critiquemos tanto o Michael porque ele tenha colocado em prática de uma maneira exagerada e pública todos os valores da sociedade de sua época. Michael foi vítima de uma sociedade que discrimina os negros e pobres e não suporta sua própria realidade, que é extremamente insatisfeita com a própria imagem. Que tem problemas de insônia, que é consumista inveterada e que usa a droga que sua renda lhe permite ou conveniência dá acesso. A questão é que Michael não teve limites porque também tinha um poder de aquisição sem limites. A ascensão da figura como astro mundial e de que maneira suas excentricidades fizeram que sua fama só aumentasse, não foi criada nem por ele e nem mesmo pela mídia. Será que não fomos nós aquele demônio que num belo dia levamos o menino Michael ao edifício mais alto e lhe perguntamos: “Olha menino! Tudo isso será teu se nos adorardes e nos imitardes”? Não fomos nós que criamos e destruímos o Michael, que lucramos com sua infância, sua existência e agora bebemos a sua morte? Pensemos um pouco enquanto velamos por Michael ou será que também que não temos que velar por nós mesmos?

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O Bioma Marginal


Por Mary Janice.

Provavelmente muitos de vocês receberam um e-mail, nos últimos dias, intitulado “Amazônia: Peça o veto à grilagem”. Nada contra a preservação da Amazônia, da Mata Atlântica e dos outros biomas brasileiros, pelo contrário reconheço a importância da preservação dos biomas terrestres para o ambiente natural e principalmente para os seres humanos. Por este motivo, chamo a atenção para o bioma no qual estamos inseridos, a Caatinga, pouco conhecido do ponto de vista científico, marginalizado pelos órgãos competentes e devastado pela população que o ocupa.
A Caatinga é um bioma exclusivamente brasileiro ocupando ca. 734.488Km2, e 80% do território pernambucano. Entretanto suas características e sua importância biológica são desconhecidas pela população local e alguns mitos como: Pobre em diversidade de espécies; foi pouco alterada pelo homem por ser um ambiente inóspito, só aumentam nossa ignorância e preconceito com relação a este bioma. Estes mitos são absurdos, os poucos estudos realizados apontam para uma biodiversidade considerável, presença de espécies endêmicas e que a devastação atinge altos índices.
Todos querem trazer água para a caatinga e isso é muito interessante. Quem disse que a caatinga quer água? A irrigação é a sua morte, as espécies que vivem nela estão adaptadas a sobreviver com longos períodos de estiagem e com a irregularidade das chuvas. O homem sertanejo, ao longo do tempo, desenvolveu estratégias para sobreviver nestas condições tão adversas, é necessário que a tecnologia e o conhecimento científico, se voltem para o conhecimento e o desenvolvimento sustentável desse bioma e consequentemente a melhoraria das condições de vida da população sertaneja, sem que seja necessário matar a caatinga.
Enfim, precisamos valorizar esse ambiente único e tão fantástico do qual fazemos parte, procurando conhecê-lo, respeitá-lo e, sobretudo, conviver com suas adversidades, pois assim como plantas e animais, já estamos adaptados a elas, apenas não nos apercebemos desta realidade. Afinal com disse Euclides da Cunha “O sertanejo é antes de tudo um forte”.



quinta-feira, 18 de junho de 2009

Violência e indiferença social: uma sociedade que gesta a barbárie.

Por Tarcisio Novais.

Penso que poucos fenômenos sociais reflitam de forma tão contundente as contradições do mundo em que vivemos que a escalada incontrolável da violência urbana. Somos bombardeados diuturnamente por notícias que expõem índices de violência e brutalidade humanas que explicitam o grau de deterioração dos laços sociais a que chegou o mundo dito civilizado e, no que diz respeito à nossa realidade próxima, a sociedade brasileira.Há poucas semanas acompanhei, com grande pesar, mais uma tragédia familiar que se desenrolou aos nossos olhos, fartamente noticiada pela imprensa, e que ceifou a vida do jovem professor Igor Duque num semáforo em Recife, baleado por um menor.As características do crime, tal qual a crônica de uma morte anunciada, seguiram o mesmo padrão dos sucessivos assassinatos a sangue frio que vitimaram outras tantas preciosas vidas. Os sentimentos de horror, indignação, medo e impotência afloram em todos nós. Clamamos por justiça. E imagino também que todos buscamos intimamente respostas para compreender o que nos parece absurdo e inexplicável. É sempre um convite à reflexão.
As respostas imediatas da sociedade brasileira a crimes dessa natureza reverberam indignação, e invariavelmente demandam a ampliação das medidas repressivas e punitivas, seja através da criação de novas leis (como a redução da maioridade penal), ou cobrando uma atuação mais eficaz do aparelho repressivo do Estado. São propostas recorrentes que sempre vêm à tona em momentos de consternação da opinião pública. Uma indignação justa, em vista da gratuidade e brutalidade dos crimes, mas que infelizmente se manifesta em toda sua potência apenas quando vitimiza pessoas que por sua condição dispõem de visibilidade social, e com quem imediatamente nos identificamos pelo sentimento de proximidade.Entretanto, quando confrontada diante de fatos e números que atestam a magnitude da violência e do genocídio perpetrados diariamente contra a massa dos “invisíveis” sociais, a reação da sociedade perde muito de seu ímpeto, e resvala para o perigoso terreno da indiferença.
O imenso contingente populacional dos excluídos fadado à invisibilidade social se posiciona numa espécie de limbo político-jurídico, é dizer, apesar de formalmente contemplados pelas garantias da cidadania, na prática estão apartados de seu usufruto. Destituídos dos direitos econômicos e sociais básicos previstos pela constituição, são ademais as vítimas preferenciais da violência homicida, mormente a praticada pelo Estado, sempre marcada pela impunidade. Nossos excluídos sociais vivenciam uma condição humana análoga à do homo sacer, conceito teorizado pelo filósofo italiano Giorgio Agambem, figura jurídica que remonta ao direito romano arcaico, literalmente significando ‘homem sagrado’, aquele que, julgado e condenado por grave delito, era banido do convívio social, simultaneamente considerado indigno de ser sacrificado, por sua natureza impura, mas cujo homicídio não era considerado ato criminoso, ficando à mercê de toda sorte de violências, e na deprimente situação do eterno “estrangeiro”. Nosso homo sacer contemporâneo também experiencia uma forma análoga de exclusão-inclusiva, na medida em que é “insacrificável” sob os auspícios da norma legal; mas cuja eliminação é friamente tolerada (e até incentivada) pela sociedade.
Uma análise mais detida desses fatos irá apontar para sua implicação no contexto mais amplo do quadro sócio-econômico e das características da genealogia de nossa sociedade.Esta situação extremamente complexa carece de uma resposta mais profunda e corajosa da sociedade organizada, para muito além da mera hipertrofia do sistema penal, como querem os setores conservadores. Suas raízes tem ramificações diversas, mas as causas mais evidentes do problema podem ser delineadas com alguma clareza.No plano econômico-social é óbvia a vinculação entre o processo de globalização sob a égide do neoliberalismo e a progressiva deterioração do nível de vida dos setores mais carentes da população. Fenômenos universais tais como concentração de renda, desemprego estrutural, precarização do trabalho, progressivo desmantelamento das redes de proteção social, e crecente mercantilização das relações humanas são constitutivos deste padrão de globalização, processo que se intensificou velozmente nos últimos 30 anos. Ainda dentro da lógica vigente do capitalismo tardio e sua racionalidade econômica, aqueles indivíduos duplamente excluídos das esferas da produção e consumo recebem o status implícito de sub-cidadãos, que carrega em si os estigmas da inutilidade e descartabilidade, vivendo sob o signo do abandono.
No âmbito político verificamos um crescente ceticismo da sociedade brasileira em relação à efetividade e legitimidade da democracia representativa e suas instituições, fruto tanto do flagrante descompasso entre os direitos constitucionais formais adquiridos e a efetivação concreta das garantias sociais previstas; quanto do distanciamento indesejável entre a sociedade civil e os processos decisórios que lhe dizem respeito.
Somado a esse conjunto de fatores associam-se ainda o processo histórico peculiar da formação de nossa sociedade, com base econômica assentada durante muito tempo na mão-de-obra escrava de negros e índios, tendo evidentes implicações na construção de nosso paradigma político-jurídico, o qual muito assimilou dos elementos autoritários e de exceção decorrentes da relação senhor/escravo e da necessidade de controle social desse contingente de trabalhadores; ainda hoje reverberando na forma discricionária com que a justiça brutaliza negros e mulatos.
O aprofundamento recente deste amálgama de condições históricas sócio-político-econômicas excludentes sempre caminhou pari passu com a elevação dos índices de violência. Qualquer pessoa com mais de 35 anos é testemunha deste fato.
Em suma, me parece óbvia a necessidade de desviarmos o foco das soluções que privilegiam a hipertrofia penal e a criminalização dos movimentos sociais, tendências dominantes nos meios hegemônicos; para encararmos a penosa tarefa de reformular a sociedade a partir de suas raízes. A tarefa essencial a ser empreendida passa pela inclusão desses cidadãos hipossuficientes nas benesses da civilização. Reduzir a violência equivale a reduzir o desespero e a dor. Num estado anômico, materialmente desigual, sem valores e referenciais humanistas compartilhados coletivamente, a violência e a barbárie campeiam, inapelavelmente.
Em que pesem os avanços sociais do governo Lula , o que assistimos hoje é um aparelho estatal brasileiro que ainda assume para si como função principal a tarefa de controle social repressivo de uma sociedade desgovernada, que em muitos aspectos parece ter regredido ao estado de natureza hobbesiano, onde barbárie e selvageria pautam as relações humanas; se omitindo de seu papel constitucional de salvaguardar as garantias fundamentais e a dignidade humana.
Uma matéria recente do JC ( 10/06) exemplifica bem uma dessas variáveis que costumam ser desconsideradas na análise do problema. A reportagem aborda o fato de que aproximadamente 220.000 crianças e adolescentes estão fora da escola, só em Pernambuco, por razões as mais diversas, mas em geral vinculadas aos contextos inter-relacionados de omissão estatal e miserabilidade de suas existências. Que tipo de futuro é reservado a esses indivíduos no seio de uma sociedade estruturada sobre o individualismo competitivo e a prevalência do mercado, e com a omissão conivente do Estado? Como desconsiderar o nexo causal entre marginalidade econômica e marginalidade social? Como não imaginar que seu destino é quase inexoravelmente a criminalidade e a morte violenta?
São questões que, por mais que escamoteadas, teimam em retornar, como um conteúdo recalcado que produz sintomas, e cuja solução passa necessariamente por seu enfrentamento corajoso e realista, desde sempre postergado.
Enquanto insistirmos em considerar nossos excluídos causa das disfunções sociais e não seu mais acabado produto, a tendência continuará a apontar para um acirramento dos conflitos sociais com desdobramentos imprevisíveis. Esconder o problema debaixo do tapete dos sistemas repressivo-prisionais está longe de ser a solução.
Armas, muros, milícias, blindagens, cercas e afins apenas acentuam os matizes de guerra civil de nossa realidade, nos dando em contrapartida uma ilusória sensação de segurança.
Enfrentemos, pois, a verdadeira face do monstro, enquanto é tempo. Por nós, pelos nossos filhos, e por uma sociedade menos enlutada.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Apresentação

“Eu vou pronunciar, porque tu o mandas,
o Lógos que vem do fundo do coração”


“Embora Minos nos feche a terra e o mar, o céu, porém, certamente ficará aberto. Por lá iremos. ”


À guisa de apresentação, somos um pequeno grupo de amigos que temos em comum, além da amizade fraterna, uma vontade genuína de conhecer e partilhar conhecimento, reflexo de uma inquietude existencial implicada a uma postura inconformista perante uma realidade que muitos concebem, não desinteressadamente, como imutável e “natural”.
Iniciamos nossas reuniões há cerca de dois anos, motivados pela descoberta de afinidades intelectuais e culturais, em que a videolocadora Claket dos amigos Djnaldo e Mary desempenhou um papel fundamental, através da riqueza de seu acervo cinematográfico, atraindo pessoas que buscavam fugir dos processos de pasteurização e idiotização reinantes em nossa cultura.
Este espaço privilegiado engendrou a idéia do ‘clube do livro’, núcleo criado com o intuito de organizar reuniões periódicas para debater obras literárias, filmes, textos ou temas de interesse geral, sempre buscando o enriquecimento intelectual e humano através da troca de idéias, da pluralidade de opiniões e do estudo de grandes artistas e pensadores.
Em que pesem as naturais oscilações e dificuldades inerentes às relações humanas e à falta de tempo que caracteriza nossos ritmos de vida, o grupo vem sobrevivendo e, gradativamente, ganhando força e incorporando novos membros. Nossos encontros se transformam cada vez mais em momentos de celebração da amizade e fonte de prolíficos debates.
Nessas oportunidades a abordagem de temas sociais e existenciais é recorrente, fonte de debates acalorados e de indagações acerca das possibilidades objetivas de contribuir na prática para uma efetiva transformação de nossa realidade.
Dessas indagações surgiu a necessidade de nos deslocar do plano teórico para a atuação concreta na realidade, cônscios de nossas inúmeras limitações, porém cientes de nosso papel como sujeitos históricos e de nossa unidade dialética com o mundo. Parafraseando Karl Marx, poderíamos resumir nosso propósito afirmando que não basta interpretar e criticar a realidade, mas de objetivamente transformá-la.
Transformar a realidade, dentro de nosso contexto histórico política e ideologicamente esvaziado, passa necessariamente pelo uso da palavra, pela irradiação do Lógos , pelo combate ao discurso hegemônico dominante, matriz de nossa visão de mundo e ao mesmo tempo responsável pelo estado de apatia e imobilismo em que nos encontramos, tendo como corolário o imperativo contemporâneo do ‘pensamento único’, como operação ideológica de naturalização da realidade.
Compreendemos que o discurso, o uso político da palavra, concorre para transformar a consciência humana e livrá-la das mistificações, abrindo um campo enorme para a ação dos homens, mediante o uso da razão; mas uma razão despida de sua conotação instrumental e utilitária, uma razão que busca o reencantamento do mundo, um sentido maior do qual somos órfãos, e do qual dependemos visceralmente; uma razão que busca resgatar os valores universais de justiça e paz, e que busca uma nova ética, fundada em bases humanistas e desatrelada do relativismo contemporâneo, desintegrador dos laços sociais.
Tendo isso em mente surgiu a idéia de criarmos esse blog, como canal de interação com a sociedade, para dividir angústias, indagações e conhecimentos, enfim, para fraternalmente partilhar a luz interior que nos faz humanos, o “Lógos que vem do fundo do coração”.